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  • Foto do escritorDanilo España

O CAMINHO DE SANTIAGO RECRIA A VIDA



Quem nos acompanha faz tempo sabe o quanto o Caminho de Compostela foi importante e significativo pra gente.


Esse é um texto inédito, publicado na Revista Rota Leste, que revela a essência do que sentimos nessa travessia… que é mesmo mágica. Para aqueles que sentem um chamado para as terras espanholas, vale a leitura:


“Sempre ouvimos dizer que o Caminho de Santiago “chama” aqueles que estão prontos para enfrentar essa jornada de superação e autoconhecimento. Acreditamos nisso e conosco não foi diferente. De alguma maneira quase mágica, sinais apareceram, deixando claro que o momento havia chegado.


São diversos os caminhos levam a Santiago, alguns partem da Espanha e outros de países vizinhos. Elegemos o clássico e místico Caminho Francês. Nosso ponto de partida foi a pitoresca vila de Roscesvalles, encravada em uma das montanhas do Reino de Navarra. Esse é o ponto de partida para aqueles que decidem iniciar a caminhada pela Espanha. Outra possibilidade é Saint Jean Pied de Port – na fronteira com França, lugar que ficou conhecido principalmente depois da obra “O Diário de um Mago” de Paulo Coelho. Os peregrinos que iniciam nesse ponto cumprem um dia a mais de caminhada para atravessar os Pirineus.


Eram 7:00 da manhã. Abrimos a pequena janela do nosso quarto em Roncesvalles. Lá fora uma névoa tão espessa que não podíamos enxergar um palmo diante do nariz. Chovia muito. A temperatura havia despencado quase 20 graus em relação ao dia anterior. Mal havíamos dormido tamanha ansiedade e euforia. Apesar de nos cercar de inúmeras informações sobre a travessia, não tínhamos a menor ideia de como a jornada seria na prática e sinceramente, havia um grande medo de não darmos conta do recado. O frio e a chuva praticamente nos imploravam para desistir antes mesmo de dar o primeiro passo.


Os peregrinos começavam a vestir suas capas de chuva e protegiam suas mochilas. Um a um partiam engolidos pela neblina. Nós ali paralisados observando a cena pela janela. O estômago borbulhava. Onde estava nossa coragem para avançar? Até que horas ficaríamos ali como espectadores?



E foi meio a tensão da largada que sentimos o primeiro sinal do Caminho. Algo nos dizia que se esperássemos mais um pouco, o tempo iria abrir.


Confiamos na intuição e em menos de uma hora a nuvem escura começou a se dissipar e as gotas, pouco a pouco, foram diminuindo. Aquele era o momento!


Partimos. A cada passo o céu se abria. A cada curva conseguíamos ver mais longe. No horizonte foram surgindo campos, bosques, montanhas e fontes de água pura. Tínhamos sido os últimos a sair de Roncesvalles, talvez os únicos a não pegar a forte chuva da manhã. A primeira lição do Caminho havia sido dada: tudo tem o momento certo para acontecer, correr contra o tempo, muitas vezes, não é uma vantagem.


Nesse primeiro dia caminhamos 27 km de muitas subidas e descidas até o pequeno povoado de Zubiri. Quando avistamos a placa da cidadezinha nossas pernas não aguentavam mais, a fome era enorme. As dores estavam por todo o corpo, que parecia ter saído do lugar.


A primeira etapa havia sido um parto. Literalmente um nascimento. Junto com a névoa da manhã, rompemos com medos, padrões e paradigmas. Aprendemos a andar novamente, dessa vez com uma mochila pesada nas costas e um cajado servindo como ponto de equilíbrio. O primeiro dia foi de grandes ajustes, entendendo como lidar com o corpo para minimizar a sobrecarga. Mesmo com todas as dores, os peregrinos haviam nascido. O Caminho tinha começado.


Enquanto procurávamos nossa hospedagem, avistamos inúmeros peregrinos nos barzinhos e restaurantes da cidade, brindando exaustos a chegada da caminhada. Dizem que o Caminho se faz com pão e vinho e já no primeiro dia entendemos o quanto ambos seriam parte integrante na nossa jornada. Mais tarde, depois de um bom banho, também fomos brindar nossa conquista.


Os dias que se seguiram em Navarra foram excelentes e de um azul vibrante no céu. A passagem por essa província nos fez lembrar da nossa infância, nos remetendo a cenários vistos nos contos de fadas. Vilarejos belíssimos e minúsculos com suas casinhas de telhados inclinados, fazendas com campos verdes e rolos de feno, vaquinhas malhadas, riachos de água pura cortando o caminho, enormes parques eólicos girando suas pás ao vento. Ficamos impressionados com a organização e limpeza da região e Pamplona, a capital da província, é maravilhosa, vale a pena ser vista independente do Caminho de Santiago.



Após “parto” que os peregrinos experimentam no primeiro dia, a travessia começa a ensinar as primeiras lições importantes: passamos a entender os limites do nosso corpo. Sentimos quanto o contato com a natureza é inspirador. Iniciamos o convívio intenso com caminhantes de diversas culturas. Nos libertamos dos excessos e nos adaptamos a viver bem com os pouquíssimos ítens de nossas mochilas. Começamos a ouvir nossa intuição e entender que seguir as flechas amarelas do Caminho é muito mais do que um exercício de orientação geográfica.


Navarra ficou para trás abrindo alas para a província de La Rioja. A paisagem repentinamente muda, assim como a organização da região. Foi preciso prestar mais atenção para não nos perdermos nas trilhas – agora menos sinalizadas. La Rioja é famosa pela produção de seus vinhos e azeites, portanto parreiras e oliveiras se alternam pelas margens do Caminho. Vinho e azeite – o inebriante e o lubrificante lado a lado nos remetendo aos prazeres da vida. Nessas terras relembramos nossa adolescência, o despertar da sexualidade, o período de grandes descobertas e as tantas vezes que na vida fizemos algo pela primeira vez.

Uma amiga que fez o Caminho, nos contou que nesse trecho começou a relembrar de alguns problemas que tinha com o pai desde a adolescência. Em uma das etapas ela conheceu um senhor e eles começaram a caminhar juntos, entre as inúmeras conversas que tiveram, ela percebeu que muito da personalidade do pai podia ser vista naquele peregrino e algo de maravilhoso aconteceu: através desse “conhecido de apenas um dia”, ela conseguiu entender como funcionavam os mecanismos da relação com o seu pai. Percebeu seus erros e acertos e conseguiu solucionar dores que vinha carregando a tanto tempo. É por essas e por outras que muita gente diz que o Caminho é mágico.



La Rioja foi uma etapa interessante. Conhecemos gente que nos inspirou, nos transformou, gente com quem até hoje temos contato. Foi nossa adolescência no Caminho ou o Caminho de volta para nossa adolescência…


Ingressamos na província de Castilla Y León, para muitos a parte mais árdua e temível da jornada até Santiago. Esse é o território dos grandes Reis Católicos que tanto ouvimos falar nas aulas de história, região marcada no passado por batalhas lendárias e que acomoda as incríveis cidades de Burgos e León.


As montanhas somem, a natureza sintetiza, o árido começa a tomar conta dos longuíssimos dias permeados por infinitas retas – quase sem distração. As sombras são raras e aparecem como oásis no meio do deserto. Muitos com receio dessa difícil etapa de mais de 300 km, pulam trechos de taxi ou de ônibus. Os peregrinos ficam “rarefeitos” e só voltam a aparecer com força na etapa seguinte, já no território da Galícia. Mas foi justamente nessa etapa que nos sentimos como parte integrante do Caminho. E ao contrário do que muitos nos alertaram, foi a província mais interessante e rica em aprendizados, onde vivemos experiências de exaustão e superação que ampliaram nossos limites.

Campos e mais mais campos de trigo repetem sua cor quilômetro após quilômetro. A aridez monocromática dessas etapas nos faz voltar para dentro nos colocando face a face com o nosso verdadeiro “eu”. A jornada aqui nos move para dentro. Castilla Y León se situa no meio do Caminho e assim representa o meio da vida. Infância e adolescência ficam para trás dando espaço para a fase adulta. Trabalho, casamento, conceitos e preconceitos, o cotidiano, propósito, legado, o aqui e agora. Ouso dizer que questionar o momento atual de vida em busca de respostas e autoconhecimento é o que grande parte dos peregrinos espera experienciar ao longo do Caminho.


Essa província ajudou a rever nossos padrões mentais e comportamentos, e também a abrir mão daquilo que não mais nos serve. Os sinais e mensagens se ampliaram vindos através de pessoas, suas histórias, seus exemplos ou até mesmo da natureza.


Ao longo dessa etapa passamos por inúmeras cidades importantes como Burgos, Sahagún, León, Astorga, Ponferrada, Villafranca. Além de vilarejos e pontos mágicos da travessia como San Bol, St Nicolas, Villacázar, Hospital del Órbigo, Manjarín, Cruz de Ferro, entre outros lugares pitorescos, peculiares e transformadores.


A chegada nas grandes cidades do Caminho causa estranhamento em alguns peregrinos após dias transitando apenas por pequenos vilarejos. Mas são elas que oferecem os serviços escassos ao longo da jornada como caixas eletrônicos, grandes supermercados, restaurantes variados, sem esquecer de atrações como museus, catedrais e lindíssimas construções históricas – muitas inclusive oferecem descontos especiais aos peregrinos.


Parto, infância, adolescência e fase adulta abrem as portas para a última província do Caminho até Santiago: a Galícia. Etapa reservada para vislumbrar nosso futuro.


Sonhos, inspirações e novos horizontes ganham força no mundo Celta, cujo ingresso é marcado pela chegada ao Cebreiro, etapa onde o peregrino sobe mais de 1600 metros em um mesmo dia. Lá somos presenteados por uma das vistas mais sensacionais do Caminho e por essa cidadezinha ornada por construções tipicamente celtas – circulares e com teto de sapê. A sensação é de ingressarmos no mundo onírico. A geografia que volta a ser montanhosa é recheada de árvores centenárias e majestosas – aquelas que convidam para o abraço. São as chamadas “Los Robles” ou Carvalho em português, mais parecem criaturas ancestrais saídas de um livro. A Galícia é como um parque de diversões natural após a última etapa monocromática e reta, sua natureza é mesmo vibrante!



Essa é a última província do Caminho. São quilômetros onde começamos a pensar em nossa vida futura, fazer planos, promessas de mudança e de desenvolvimento pessoal. Novos sonhos são delineados e a energia é absolutamente renovada.


Santiago de Compostela estava próxima. Fomos aconselhados a fazer a última etapa do Caminho durante a noite para chegar na cidade ao amanhecer. E assim fizemos. Inenarrável a sensação de sermos guiados pelas setas amarelas no escuro, em ouvir a natureza falar conosco na escuridão. Ingressamos na cidade com os primeiros raios de sol despontando no horizonte e assim como o previsto fomos os primeiros à ingressar na catedral. Ficamos sozinhos por quase meia hora diante da urna do apóstolo Santiago. A emoção tomou conta de nós. Choramos. Um choro que vinha de uma alegria profunda, de uma enorme satisfação. A sensação era de dever cumprido e de uma enorme gratidão.


O choro também representava um pouco do vazio que começava tomar conta. “E agora que chegamos? O que será de nós? Pra onde vamos?”


As etapas haviam sido cumpridas mas ainda nos faltava encerrar a jornada.


Muitos peregrinos, após a chegada em Santiago de Compostela, avançam até o Oceano Atlântico para um rito de passagem que acontece em Finisterra (ou fim da Terra). Com o ciclo “nascimento, adolescência, vida adulta e sonhos futuros” concluído, chega a hora de renascer antes de voltar para casa. Num lindo pontão de pedras olhando para a imensidão do mar, diversos peregrinos se isolam por um momento para queimar algum dos objetos carregados ao longo da caminhada. Pequenas fogueiras são acesas onde botas, calças, bermudas, camisetas, mochilas ou bonés são queimados junto com todos os pensamentos e comportamentos que precisam ser deixados para trás. Como fênix, o peregrino morre e renasce das cinzas, se comprometendo a reiniciar sua vida de um modo diferente. Um novo Caminho nasce ali.


… E assim o Caminho recria a própria vida, com todos os seus ciclos – do nascimento à morte, finalizando com o renascimento. Essa talvez seja a grande mágica dessa via milenar. O grande mistério que atrai peregrinos desde os tempos mais remotos.


Sem dúvida a jornada até Santiago foi uma das melhores experiências de nossas vidas. Faríamos tudo de novo. E sim, depois do Caminho a vida não é mais a mesma…”


Por Luah Galvão



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