Cenário da nossa próxima história que inspira: Bath Spa na Inglaterra, cidadezinha que mais parece Hogwarts das histórias de Harry Potter. Lugar de águas termais que preserva até os dias de hoje um autêntico banho greco-romano, um espaço incrível que nos fez entender na prática parte de nosso estudo sobre a antiga civilização grega, base do nosso projeto.
Mas não é sobre os banhos e nem sobre a sensação de estar dentro de uma das sagas de Harry Potter que vou escrever, e sim sobre uma grande figura que conhecemos em nossa passagem por lá. Seu nome Carol Jones, inglesa, de origem africana, a primeira Rastafári legítima que tivemos o prazer entrevistar.
Em outra matéria, comentamos sobre o longo período em que o Danilo ficou hospitalizado para tratar da Febre Tifóide que pegou durante nossa estadia na Índia. Pois bem, enquanto o Danilo se restabelecia à duras penas, achei um sótão de Bed & Breakfast pertinho do hospital. Foram 25 dias em companhia da querida Maureen – senhora dona da hospedagem, e de Carol, que algumas vezes por semana vinha para dar uma força na organização do lugar.
Desde a primeira vez que vi a Carol entrando em “casa”, algo me disse “vou me dar bem com essa figura!!”. Dona de um sorriso largo e de um carinho sem igual, Carol me deu muita força para atravessar o período mais difícil da viagem. Não foi fácil ficar num país estrangeiro, longe de todos, sem saber se o Dan ia mesmo se recuperar e sair bem dessa…
De cara Carol chamou minha atenção, pois tinha sempre seu cabelo envolto por uma espécie de turbante. Com tantos londrinos e ingleses fora da caixa, nossa amiga poderia perfeitamente ser mais uma dessas pessoas excêntricas, mas não, aquilo não era um turbante moderninho e sim um lenço fino que cobria uma vasta cabeleira que nunca foi cortada durante a vida. Não sabia com profundidade mas na cultura Rastafári, muitos de seus seguidores não cortam ou penteiam os cabelos e os conhecidos Dreadlocks, simbolizam uma conexão espiritual com o corpo físico – cada “Dread” está ligado à uma de suas partes.
Todo aquele volume sob o lenço era cabelo e Carol respeitava muito sua cultura. Isso só aguçou minha vontade em saber mais sobre aquela figura motivada que nos visitava de tanto em tanto tempo, sempre nos trazendo alegria. Certo dia fizemos um trato: quando o Dan saísse do hospital ela nos daria uma entrevista. Como para os ingleses promessa é dívida, assim que o Dan se recuperou lá fomos nós tomar um chá das 5 super British na casa também super British da Carol. Ao contrário de tudo que eu podia ter pensado durante os dias separaram a proposta e a visita, Carol morava numa casa super gostosa e tipicamente britânica. Nada da sua cultura Rastafári estava visível, a não ser em um quarto que mantinha trancado a sete chaves. Aquele era o verdadeiro “mundo de Carol”. Um canto da casa que apenas nos foi revelado quando lançamos a pergunta “O que te Motiva?”, e melhor do que responder ela achou por bem nos mostrar o que realmente a fazia levantar todos os dias e seguir adiante.
Foi aí que as tradicionais cores Rastafári e outras tantas saltaram aos nossos olhos, espalhadas em diversos objetos: cartões, guardanapos, copos, pratos, cadernos… Carol nunca havia comentado trabalhar com as artes gráficas e somente lá, dentro de seu universo em cor é que descobrimos sua aptidão e seu amor por misturar figuras, texturizar, colorir e expressar parte da cultura africana e Rastafári.
Abrindo um parênteses, minha curiosidade me levou a ler um pouco mais sobre o tema e descobri coisas interessantes. Não é à toa que os “rastas”, como se autodenominam, usam expressivamente as cores amarelo-dourado, vermelho e verde. Essas são as cores presentes na bandeira da Etiópia, onde o movimento teve origem, e juntas representam a lealdade ao movimento e à nação africana. O vermelho representa o sangue dos mártires, o verde a vegetação da África e o amarelo-dourado, a riqueza e prosperidade de seu continente. E esse afrocentrismo ficou evidente em seu trabalho, que apesar de multicolorido, trazia um excedente desse prisma de “cores-rasta” e também a combinação de diversas figuras com contornos africanos.
A quantidade de objetos era enorme e todos estavam dispostos e organizados como em uma loja. De cara achamos que ela os vendia em sua casa, por isso o esmero em apresentar seus produtos. Mas descobrimos que não, aquele não era um mostruário ou qualquer coisa do gênero. Pelo contrário, Carol nunca havia mostrado nenhuma daquelas peças para ninguém além de seus filhos ou amigos íntimos. Todas aquelas centenas de objetos elaborados anos à fio estavam trancados naquela sala, pairando à espera de um sonho realizado. Sua arte, ao mesmo tempo em que era sua maior paixão e motivo de viver, era também fonte de uma tristeza velada. Por medo do não reconhecimento do seu estilo artístico e pela dúvida da aprovação do público, Carol nunca tirou seus produtos das prateleiras de sua casa para serem exibidos ou comercializados. Seu maior sonho: levar seus grafismos, suas cores e sua cultura para fora das 4 paredes, mas a coragem sempre faltou para esse primeiro passo. Esse medo tremendo do não reconhecimento e da não aceitação fez com que trocasse um possível sucesso por uma vida menos entusiasta e comum, ajudando na arrumação de hospedagens e casas de família.
Durante nossa estadia em sua casa ela foi nos confiando seus medos e nós por outro lado, fomos tentando dar um empurrão. “Mas e se ninguém gostar da minha arte?”, argumentava ela. “Carol, se você gosta e nós gostamos, sempre haverão outras pessoas para apreciar aquilo que você faz”, contestamos. “Você já tentou levar em lojas e papelarias para mostrar seus produtos?”, dissemos nós. “E se ninguém quiser ficar com as peças?”, disse ela. “Você já tentou?”…
Não, ela não havia tentado… nunca. Mas nos prometeu, no final do nosso encontro, batalhar pelo seu sonho. Enchemos sua cabeça de idéias e inspiração… acho que ela se convenceu que já estava na hora de destrancar sua “porta” e se empreender. Falamos sobre a vida, tomamos chá, tiramos fotos para nosso álbum de histórias e saímos de sua casa já com saudosismo. Ao longo da viagem tentamos contato várias vezes, em vão… não soubemos se ela conseguiu libertar seus sonhos. Optamos por acreditar em sua promessa. Na cultura Rastáfari, o mundo deve ser visto e compreendido de dentro para fora. Todos eles tem como lema descobrir sua própria verdade, Carol estava vivendo sua busca.
Ela nos fez pensar sobre como o reconhecimento é mesmo importante. Sem mérito, muitas vezes não há estímulo. Reconhecer a luz do outro é um ato de generosidade que tem um grande poder de mover. No mais, os helênicos há mais de 2 mil anos, já diziam que temos que revelar nossa luz interna, pois ao prendê-la, somos traidores de nossa própria existência. É no exercício de nossos talentos e habilidades que trilhamos o caminho de nossas paixões e do verdadeiro entusiasmo.
Por Luah Galvão
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